10.6.19

Sessenta





















onde chego hoje
que as portas estão fechadas?
que mais vou encontrar para além de todas as praias
onde a areia sempre se escapa das mãos
e se agarra aos calcanhares?
que mais posso levar do espelho
que as rugas de todos os dias
fundas
mergulhadas nas histórias
que me esqueci de contar ou viver?
há uma árvore velha
faz o tempo antes de nascer
com ramos novos e um tronco oco
na beira de todos os meus caminhos
e um muro negro
cheio do musgo que a chuva encharca
em cada dia de inverno
onde me encosto e entendo
já não sei saltar
e estes braços com a força de todos os sempres
e as dores dos pequenos nuncas que tanto doem
sem mãe
sem lábios doces
sem abraços quentes amplexos
chego-me e não quero entrar
sou o miúdo de sempre na vergonha
de encarar os dias
do medo das noites escuras
da cabeça cheio das palavras que arrebanho
e empino
sem deixar cair
hoje que os sessenta assomam
e a minha biografia se encolhe
sou o dia seguinte
o sempre em frente
o está tudo bem
sempre bem-disposto
e os olhos em círculo nervosos para te procurar
que o amor ainda volta nos sorrisos
das mãos frágeis
e dos olhos saltitantes
onde me chego hoje
que é véspera do dia a seguir.

22.2.19

Exato




é do sabor das ruas
dos espaços cheios
de tudo e de todos
que prenuncio o riso das tuas gargalhadas
fazendo-me feliz
o teu corpo exato
cabe na minha maneira de amar
como se uma peça única formasse
a tua medida
emudecendo-me
os pedaços íntimos dos teus sussurros
os pequenos detalhes de ti
que escrevo em cada folha branca
as dores destas mãos vazias
cheias da tua ausência
do teu toque
como um luar que me roça a pele
e o arrepio das janelas semiabertas
largadas à noite
chamando-te
que regresses
é do teu lado
que o silêncio inanimado
ressuscita
e apenas te procuro
para que te deixes estar por aqui
e no teu tempo
escolhas
dizer o meu poema em voz alta
para saber que outro poema nasce

12.1.19

Dança
















é deste calor ténue
que o meu corpo se alimenta
quando o sol irrompe pelos vidros
e se desnuda
no afago breve de te sentir tão perto
o calor dos teus lábios
dois passos de dança ágeis
e a tua cintura fina nas minhas mãos
voando
é da forma inexata como me expresso
que a angústia salta do meu peito
e as palavras têm tão pouco a dizer
apenas tua fronte encostada ao meu pescoço
o calor dos teus lábios no meu peito
o sentir sem tempo
dois corpos que não se unem
e gritam
doendo
sós
como este poema custa a escrever
e se perde
no alvor das primeiras horas

11.12.18

Pedes-me


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pedes-me que te negue
o que nunca ousaste pedir
como um rio preguiçoso
que tarda a foz
invadindo recantos esquecidos
espraiando-se
onde o sol queima
e o chão se incendeia
largas pelo chão a minha camisa
que nunca vestes
provocando-me nua
ao saíres da tua cama
pelo teu próprio pé
faminta
como um leopardo descendo
dum imbondeiro
insolente
no disfarce da tarde caindo
pela noite
voltas
deitas-te ao meu lado
as tuas coxas são a minha casa
que fechas à chave
sorrindo
saboreando a chuva
que não acontece
perpetuando o mistério
do teu não
do meu sim
de nós nunca sermos
mais do que não fomos.